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domingo, 28 de fevereiro de 2016

Mumbai Velvet


Mumbai Velvet é um filme de gangsters, que atravessa os primeiros quarenta anos da independência da república, lei seca, disputas de terrenos, assassinatos e ajustes de contas, corrupção e chantagem e uma noite vibrante e multicultural, um fascínio pelo jazz e por Chicago anos trinta.
Vinte e uma horas na urbe selvagem, não foram suficientes para completar todas as peças do puzzle que a constroem.
Já sobre o Oceano Índico, através do minúsculo ecrã emoldurado no assento da frente do gigantesco Jumbo, construía-se a peça que faltava para entender a metrópole que nunca foi capital, apesar do seu arrojo, da sua arrogância e despudor.
Na penumbra adormecida do grande pássaro do ar, desfilava a cidade que propositadamente nos tinham escondido, o pedaço de história que justificava a ansiedade que pairava entre a poluição asfixiante e o mar libertador que rodeava a ilha, e a intensidade com que se procura plantar arranha-céus nas imensas avenidas marginais, outrora pântanos e teatros de disputa entre aventureiros, descobridores, comerciantes e piratas.
E nunca foi capital porque lhe foi negada a aristocracia da História, que a despiu das fortalezas dos invasores do norte persa, dos palácios de dinastias de origem ariana.
No longo curso de uma Humanidade documentada, Bombaim é uma extravagante, despudorada e descontrolada demonstração de novo-riquismo, com pouco mais de quinhentos anos de vida, um território de pioneiros e piratas, mercadores e colonizadores.
Estes últimos que tentaram reproduzir apressadamente o esplendor Vitoriano à beira do Hemisfério Sul, receando que o tempo e as influências nativas não tolerassem por muito tempo, tão grandes invasões de estilo.
E não é a feira de desigualdades que desfila nas avenidas da mais populosa cidade da India que a distingue de todas as outras.
É o atrevimento com que se esforça em destruir as reminiscências do último império organizado que a transformou naquilo que ela é, numa espécie de infanticídio invertido e construir torres, muitas torres, sabendo que, por mais que construam nunca ocuparão toda a imensidão deste território, porque, no seu contínuo esforço de construir através da destruição, continuam a amontoar destroços que não se conseguem enterrar, milhões de vítimas que ficam presas às portas do El Dorado.


Para que não haja dúvidas sobre a inevitabilidade do fenómeno, cada nova torre construída, emergem dezenas de novos espaços de sobrevivência dos milhares que empurraram as pedras, mas que não cabiam no esplendor do vidro e do betão.
Eram dez da manhã, tínhamos aterrado há três horas e já nos tinham mostrado a história dos lavadores de Mumbai, transformada em atração turística, a demonstração de que muitos sonhos, nesta cidade, morrem à beira do comboio.
E enquanto desfilam os milhares de prédios clássicos devolutos, à espera que a especulação imobiliária os transforme pela destruição, a burocracia da república e os milhões de seres que essa mesma burocracia não expele para locais que não incomodem o betão, adia o momento em que Mumbai se transformará numa chinesa Xangai.
Por aquilo que nos deixaram ver, Mumbai ou Bombaim, conforme a herança cultural, vai permanecer muito própria, tão próxima quanto distante da tradição Hindu, mas longe de uma qualquer lógica cartesiana e centralmente planificada.
Numa cidade construída e de tons do Sul – como Delhi é feita de tons do Norte – prevalecem os símbolos da modernidade sobre a tradição como os automóveis que atropelam os riquexós e as bicicletas mas, ao contrário do Norte, a multidão que aqui vive é visível, incómoda e transpira convulsão, sangue quente e opiniões avassaladoras.


E enquanto dirimia, sentado num estabelecimento tão ocidental quanto asséptico, a vontade desesperada de um café forte, com um chá próprio para estômagos fracos, entravam três miúdas a rondar os vinte, calções curtos olhares curiosos, atrevida ausência de pudor e uma maquilhagem irrepreensível sobre a pela morena.
Na esplanada recolhida, fumavam sem remorso e, no passeio, uma idosa vestida com um sari com as cores da tradição, dividia-se entre a reprovação e a incompreensão do presente que polvilha a cidade em todas as esquinas, num olhar perdido de desorientação perante a mudança de paradigma que envolve esta cidade
Como os bairros coloniais que se dispõem a morrer pela especulação do novo ouro terra – mas não morrem - a frente marítima em todo o seu esplendor colonial, ou as torres do silêncio, aquele terreno santificado, onde apenas os Parsis podem entrar e onde se especula se continuam a depositar os corpos dos seus mortos sobre as torres cilíndricas, para que possam ser devorados pelos abutres, porque acreditam que é a forma mais amiga do ambiente para lidar com a morte.
Enquanto aguardo que o pôr-do-sol varra a multidão que se passeia sem destino nem razão em redor da Porta da India, os bandos de corvos enfrentam-me na defesa do mar e garantem uma vista privilegiada para a imponência de um monumento que foi construído para ser uma grande porta de entrada do Império Britânico mas que foi o arco por onde eles, os últimos colonizadores da India, saíram em quarenta e sete.
E, nesta imponente porta, a única coisa que mudou foi o nome de Bombaim.
E os corvos, garantem-me que, a razão por que há sempre milhares de transeuntes a rondar o arco de Mumbai, é que todos procuram entender se se trata de uma porta de entrada ou de saída.
Eu já não tenho dúvidas, é o último entardecer.

Out of India!



quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Goa - A insustentável leveza do ser


Não há mal nenhum no passado.
Nem sequer em viver apenas das memórias do passado
Mas R (um nome absolutamente português) não aceita o presente e esse facto transforma-o num homem azedo.
Estranho, especialmente quando o passado se sente nos pormenores do presente, uma espécie de vivência lânguida que subsiste bem para além da velha Goa.
Especialmente quando o passado, como o mar e o clima, temperou um povo com mais sal e menos pimenta os autóctones continentais.
E o mais bizarro deste pequeno homem é ele acreditar que nos encanta com as réplicas inexistentes de um Portugal que, também ele, já não existe.
O que encanta na velha Goa e na nova Pangim é a forma como as culturas se fundiram de uma forma tão sanguínea que ninguém perde tempo em lembrar o passado, porque este foi absorvido no novo quotidiano de uma forma singular.
E só R reclama ruidosamente com os indianos, provavelmente goeses de apelido português, católicos de religião confessa e de um absoluto desconhecimento da nossa língua, por não tirarem os chapéus à entrada das igrejas, por substituírem os ramos de flores por coroas na adoração aos santos, por não conhecerem os símbolos da história de Portugal, por se mostrarem indolentes em lugar de subservientes.
Como afirmava o gestor indiano de uma empresa farmacêutica, à saída do avião de Bombaim, o pessoal aqui em Goa não gosta muito de trabalhar.
Suave indolência latina, impregnada na pele escura dos habitantes de Goa.
Uma indolência que atenua uma sociedade indiana muito estratificada que, frequentemente se suporta em relações de subserviência entre classes.
Quando mostrámos o cartão do gestor de Bombaim, um homem que só falava de futuro, o Ex farmacêutico R, ultrapassado pela origem e pela capacidade de assimilação, esboçou um esgar de desprezo “é um indiano de Bombaim”, como se não fosse relevante conhecê-lo, sequer.
E tudo aconteceu entre um caldo verde – muito aceitável aliás – e um peixe frito, num restaurante que servia comida vagamente portuguesa, numa sala decorada com mobiliário indo-português, povoada de estátuas de elefantes, bebendo cerveja indiana no coração do bairro das Fontainhas.
O motorista Gomes, que esboçou um sorriso complacente quando se apresentou, um goês de ascendência indiana e absoluto desconhecimento de Camões e da sua língua, aceitava os gritos de R, as esperas pelos nossos intermináveis almoços e jantares, as nossas incríveis horas de acordar, os locais ardilosos para onde os levávamos, com a mesma paciência dos seus colegas hindus do continente, mas usava um relógio de marca e dele desprendia-se uma ligeira soberba, uma altivez apenas reconhecida por latinos a latinos.
E descontada a leveza própria de um território com metade da população de Varanasi, é a herança de Albuquerque e das famílias Bhrahmin convertidas a um catolicismo que não renega os templos hindus de família, que transparece da paisagem.
E por isso mesmo, as catedrais despovoadas da Velha Goa convivem sem mágoa com o desgoverno autorizado do mercado de Anjuna, e os extensos arrozais da Goa do sul com as festas ao pôr-do-sol dos areais da Goa do Norte, pejados de multiculturalismo, sons cool, hindi e metal e de olhares em levitação acelerada.
Nada que incomodasse o velho reformado goês que passeava tranquilidade entre as igrejas e as portas da Velha Goa, recordando aos netos portugueses os momentos exuberantes de fé do Santo Francisco, e se intrometia – num português perfeito - na nossa curiosidade, aceitando sem pudor a sua condição de magistrado de um território indiano.
Ou o português da Amora, que festejava os oitenta e cinco anos da sua avó goesa, rodeado de uma vintena de familiares de origens distantes e indeterminadas, cujo único múltiplo comum era a avó e a língua inglesa.
Nem o mercado de Pangim, construído numa arquitetura de Estado Novo e bancas da fruta, que transborda para fora dos seus limites em barracas de rua e panos garridos, como uma afirmação hindu da necessidade de manter o caos, para continuar a viver.
E o motorista Gomes, que já conhece todos os santuários, igrejas e seminários católicos, vai abanando a cabeça, da forma que um ocidental percebe, entrega-nos na paz interior do seminário de Rachol, perde-se no caminho para a casa Figueiredo, basicamente porque não consegue soletrar a reta final da palavra, entrega-nos o autocarro nas mãos para orientar o trânsito caótico à saída do pôr-do-sol de Anjuna, conduz-nos ao forte dos Reis Magos e aventa a possibilidade de haver transporte de cá de baixo lá para cima, encolhendo os ombros e comunicando-nos que ali já não vai há mais de seis meses, como que estranhando porque, raio, é que estes portugueses queriam tanto visitar um local que, há cinquenta anos, os mesmos portugueses tinham abandonado em estado de profunda ruína.
Algo aliás profusamente lembrado pelo impecável restauro, iniciado pelo governo da república indiana em 1961, em prol da preservação da História.
Embrulha!
E a imponência restaurada é tão notória, que deixou de ter importância a dúvida histórica – e a confusão de R – se, afinal Vasco da Gama esteve ou não no território.
E, com os pés na areia, não conseguia entender porque é que, ao ritmo de cada pequena ondinha de metro e meio se ouvia um eco gritado que ressoava, na horizontal, ao longo de toda a praia de Baga.
Mergulhado na água tépida do Indico, os gritos eram acompanhados de braços ao alto e de risos estridentes, temperados por um inglês com sotaque e de tez morena,  “ I can’t swim, you will save me”
Sentados na esplanada, as estrelas de cinema de Bombaim despejavam barris de cerveja, as mulheres continentais fumavam sem pudor e desfrutavam de fatos de banho decotados.
Afinal de contas, o mar, o calor e as heranças devem ser desfrutados por todos.
Como a manhã em que me perdi de propósito nas ruas de Pangim, e dei por mim a fotografar riquexós como se fossem táxis, e anúncios de filmes indianos pendurados sobre arquitetura colonial, tão familiar me pareciam as bordas dos passeios pintados de vermelho e branco.
Como o jantar no hotel Mandovil.
Oito e meia da noite, pontualidade para o jantar no hotel Mandovi.
Segundo R, um clássico de bem comer goesa e portuguesa (é também interessante a associação entre estes dois símbolos)
A sala chamava-se alcova, as escadarias tinham um leve trago art Deco retardado e, ao entrarmos na sala, deparávamos com uma decoração estilo restaurante chinês, um empregado com acentuado odor a suor, de bigode farfalhudo, farda rosa e gravata transbordante, que nos lembrava os empregados do café central, por volta dos anos cinquenta e, ao fundo, por detrás de um balcão de bar, forrado de papel de parede, um jovem indiano aparentado com o Speddy Gonzalez e uma viola maior que o seu tronco, esbracejava entusiasmado todos os êxitos dos anos cinquenta e sessenta, acenando muito quando lhe batíamos palmas, e cantando sempre do fundo da sua alma, especialmente o Let it be.
Nesse momento lembrei-me da história do R quando afirmou convictamente que, após a segunda reconquista de Goa pelos portugueses, estes lançaram uns quantos crocodilos para o rio Mandovil, para protegerem a cidade de Goa de potenciais invasores.
E ainda hoje existem, não aqui, mas lá mais para cima.

Ai Speddy, que sorte a tua!










segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Akbar



Conhecer os grandes Mughals é um imperativo histórico. Oriundos do Uzbequistão, no princípio do século dezasseis, estes persas são os responsáveis pela herança muçulmana da grande India.
Babur marchou sobre Delhi e foi coroado imperador do Indostão, e derrotou os Mewar a sul, numa guerra santa contra os infiéis hindus.
O seu filho Humayun suprimiu as rebeliões e consolidou o império, perdeu-o para os afegãos e recuperou-o por acaso.
O pai era obcecado por literatura e o filho por astrologia e astronomia
Akbar foi coroado com catorze anos após a morte do pai e não tinha qualquer educação formal, mas foi o maior dos reis Mughal que reinaram na India entre os séculos dezasseis e dezoito. Não se apelidava de rei porque o único era o Sultão, apesar de reinar um dos maiores impérios do mundo.
Construiu uma nova capital, chamou à cidade dignatários de todas as religiões, incluindo católicos e judeus, debatiam política e religião no seu palácio, ele o Sol, os outros os astros. Casou com uma Hindu, eliminou os impostos exclusivos para não muçulmanos e introduziu elementos da arquitetura local nos seus palácios.
Mas o consenso e a convivência pacífica entre religiões, morreu com Akbar, em 1605, apesar do império se ter mantido no auge por mais cem anos de traições fratricidas, de imponência arquitetónica e de alianças estratégicas.  
Aurangzeb, o último dos grandes imperadores reinou com uma fúria ortodoxa contra os outros povos e religiões e, tal como previu, depois dele só o caos, entregue numa bandeja aos novos senhores, os ingleses que, em meados do século dezanove eram os novos senhores da península.
Mas quando chegamos a Agra sentimos, tal como em Delhi, uma herança muçulmana tão forte que nem a neblina apaga.
São os sons do chamamento à oração, são os túmulos dos grandes imperadores, obras de uma imponência e de uma riqueza só possível numa terra de pedras preciosas e de imensas histórias de amor.
E apesar da história da grande península não ser um conto de fadas e a grande nação hindu que governa a India moderna não venerar os corpos após a morte, quando caminhamos ao longo destas magníficas obras do génio humano, respira-se o espírito de Akbar, rodeados de milhares de seres humanos que festejam os símbolos de grandiosidade do passado, sem crenças ferozes, com uma curiosidade perante o diferente e um espírito que lembra a brisa que vem do rio e desvanece o nevoeiro que acorda com a cidade.
Às dez horas na fortaleza vermelha e ao meio dia no Taj Mahal, não me recordo de ter visto hindus e muçulmanos, apenas grandes famílias que contemplavam as pedras brilhantes do túmulo da mulher amada com o mesmo deslumbramento com que nos rodeavam a nós, europeus, apertando as nossas mãos e fotografando-nos com o mesmo despudor que nós a eles.
Nos santuários da India muçulmana, vivem-se momentos fugazes de consenso e curiosidade cultural.

A herança de Akbar!





domingo, 21 de fevereiro de 2016

India News


Hindustan Times, 23 de Janeiro, Edição Agra
Primeira página

“On January 18, Rohith Vemula, a scholar of the Hyderabad Central University, who was a Dalit, a significant detail, hanged himself in a hostel room. In a few days he would have turned 27”


“Tension gripped parts of Jalaun district in Uttar Pradesh after locals found what seemed to be body parts of about 100 cows on Friday, the Hindustan Times newspaper reported quoting police and officials.
Cows, whose slaughter is banned in the state, are an electioneering code word and a rallying cry for both Hindu nationalists and their opponents across India”


 “Indian authorities arrested four young ISIS militants in New Delhi, accused of planning massive attacks on Republic Day (January 26), which commemorates the implementation of the Indian constitution in 1950 and the day in 1930 when the Indian National Congress declared independence from the United Kingdom.
A militia group known as Hindu Swabhiman claims that it has 15,000 fighters ready to combat ISIS, reported the Times of India earlier this month.  
If it does not take on ISIS now, the militia reportedly says it fears the jihadist group will occupy Indian territory by 2020.”

Um suicídio, um massacre e uma ameaça terrorista.
Três notícias, aparentemente desconexas, faziam a capa do Hindustan Times de 23 de Janeiro.
No entanto, o suicida era um estudante universitário Dalit, os intocáveis “sem casta que foram criados a partir da poeira em que Deus pisou”,
As vítimas do massacre eram os animais sagrados, cem animais mortos num país em que, pelo menos, oitenta e três por cento da população os venera.
A ameaça terrorista provém da maior comunidade muçulmana minoritária do mundo.
As três, aparentemente desconexas notícias do dia, falavam de castas e oportunidades, de vacas sagradas, de religião e intolerância

Há sete anos atrás, em Bangalore, explicaram-me que, quando falamos do povo indiano, alguns factos revelam, dimensão, diversidade e tradição; civilização antiga, uma demografia exuberante (palavras minhas) e uma dicotomia religiosa, com origens históricas, de maioria hindu e de uma imensa minoria muçulmana.
Explicaram-me também que vinte e cinco por cento da população é iletrada e mais de quatrocentos milhões de pessoas têm menos de vinte e um anos.
E quando pretendemos entender a força de trabalho indiana (portanto o povo) não nos podemos esquecer que a cultura indiana é fortemente influenciada pelas relações sociais, a natureza das relações com o ambiente que os rodeia e entre eles (ligadas a um sistema de castas), mas igualmente por uma forte convicção do destino, que proporciona às pessoas o conforto com o que têm e com o que não têm, e olham para isto como parte das suas crenças hindus.
Trindade Hindu fala em Criação, Preservação e Destruição e suporta-se na ideia de que tudo na vida é dualismo, e que só existe criação, se houver destruição.
A notícia de Rohith Vemula é uma história de destino, justificado no seu bilhete de despedida com razões interiores “gap between my soul and my body”.
Não fosse o discurso do primeiro-ministro quando, dias depois do sucedido, numa cerimónia de entrega de diplomas na Universidade Ambedkar, lamentou o sucedido e pediu aos estudantes que se lembrassem do exemplo do Dr. Ambedkar que acreditava que as lutas podem ser ultrapassadas com a educação, e que ele ultrapassou muitos obstáculos, e mesmo insultos, mas que teve força para ultrapassar esses obstáculos.
“ Ambedkar não viveu para si próprio. Ele alcançou tudo e, mesmo assim, dedicou a sua vida à nação e aos marginalizados”
É obviamente importante referir que Ambedkar, foi o primeiro Ministro da Justiça da república, o grande defensor dos intocáveis e que terá desafiado os Dolit a abandonar o Hinduísmo que os escravizava e a converter-se ao Budismo.
Diz-se.
Mas Ambedkar morreu em 1956, e atualmente o Budismo está em extinção na India.
As outras notícias não são histórias de destino, são vestígios de uma diversidade explosiva ou de uma História mal resolvida.
De jornal debaixo do braço, nesta manhã de pesada neblina, mantinha todos os meus sentidos alerta; procurava tornar esta equação resolúvel, ouvia a história do príncipe Mughal que pagou milhões por uma pedra falsa, respondendo à rapariga que não, não seria um mau príncipe, porque os milhões que ele estava disposto a pagar iriam comprar os trinta e dois diamantes que via, sempre que ela sorria, e ainda espreitava por cima das muralhas do forte vermelho, na esperança de ser o primeiro a ver o Taj.

Mas o Taj não se descobriu e eu desisti de querer explicar a História e a Natureza dos povos.


sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

O horóscopo Hindu



Horóscopos compatíveis são o primeiro momento, a seleção natural, para um casamento combinado
Um processo meticuloso que prossegue com o envio de fotografias e a marcação de entrevistas e que tem como objetivo maximizar compatibilidades e assegurar a felicidade racional e controlada.
Aceitando que a astrologia é a rainha das ciências, uma espécie de manto protetor contra os lapsos de escolha dos humanos.
Não parecia ser essa a preocupação do tratador ou condutor do elefante indiano – mais franzino e menos dotado que o irmão africano – que procurava arrastar os obesos ocidentais, encosta acima.
O tratador do elefante – cinquenta elefantes vezes cinco subidas por dia vezes duas pessoas, independentemente do seu peso – não era o dono do elefante, porque o patrão era dono de vinte e quatro elefantes mais vinte e quatro tratadores, tudo vezes cinco subidas vezes, pelo menos, uma largas centenas de rupias vezes os dias que o elefante e o tratador aguentarem.


Não é de todo a preocupação do agitado Berto que procurava captar a atenção dos transeuntes e fotografar os ocidentais bananas que se desequilibravam no dorso do elefante e fazia-os jurar que só o Berto tinha as fotografias acertadas, procurem o Berto e digam não aos outros todos, e que os perseguiu sem deixar rasto todo o dia por todo o local para lhes entregar um molho de imagens impressas em papel encardido por duzentas rupias em mais de dez poses aparvalhadas por minuto.
A vinte quilómetros de distância.
A astrologia é uma ciência dos nobres para os nobres, é um manto protetor que não permite a identificação de compatibilidades através da escada social.
Não é pois uma ciência igualitária.
Por isso o tratador de elefantes e o Berto, uma espécie de fotógrafo, impressora e realizador de portefólios neo românticos, não invocaram os astros para nos transportar ao palácio dos deuses.
E nessa manhã desfez-se a nossa fé humanista e ocidental do pequeno empreendedor como o motor do desenvolvimento do grande mercado interno.
Tal como em todos os negócios da India mais ou menos informal, há sempre uma multidão de membros informais de uma casta inferior que asseguram a prosperidade dos médios comerciantes, e o deleite de um serviço silencioso, eficiente e agradecido.
Na maior economia de mercado do mundo, o chão eleva-se sempre à altura do último ser humano da cadeia social.


Acima da poeira, vive a economia mais feroz e resiliente do mundo.
E enquanto me derretia com o arrojo das muralhas dos grandes senhores dos pequenos reinos e enquanto me contorcia com a necessidade de reconhecer, agora numa cadência mais do que diária, que nenhuma moeda tem apenas uma face, voltava a habituar-me às coisas como elas são.
A dinastia dos marajás de Jaipur mudara-se, no século dezoito, deste reino de montanhas cercadas por muralhas imperiais com nome de pedra preciosa e a mais de meio caminho entre o a terra e o céu, para a cidade no vale, apenas por causa do Sol, e da vontade empreendedora do mais brilhante dos reis da dinastia, um matemático, um cientista, um astrónomo, tudo na mesma pessoa.
E com o marajá mais inteligente de toda a dinastia nasceu Jaipur, uma cidade construída a régua e esquadro e um observatório do Sol e dos astros, plantado no esplendor da planície, nos portões do palácio da cidade.
Afinal de contas, por aqui ninguém se casa sem consultar os astros.



Apesar de, não ter a certeza que a matemática seja o mais relevante na vida dos terrenos.
Pelo menos abaixo da poeira.
Umas décadas mais tarde, outro membro da dinastia dos marajás, decidiu pintar toda a cidade de rosa, para a agradar aos ingleses, de visita nestas paragens.
Até o Observatório.
E enquanto o Berto corria encostas e vales, como o homem da maratona, para nos entregar uma dúzia de fotografias impressas em papel encardido, buscando em todos os cantos e buracos, porque desta busca dependiam as duzentas e cinquenta rupias de um dia de trabalho, eventualmente partilhado com alguns informadores, o homem da impressora, o dono da máquina e o fornecedor de tinteiros, o regente e pai do jovem marajá de dezasseis anos, proprietário dos palácios, agora luxuosos hotéis de charme, saía pela porta do palácio de jaqueta azul e lustrosa, de pose imperial e estatuto guerreiro e juntava-se ao povo no pátio do palácio cedido a museu nacional, uma sociedade proveitosa entre a moderna republica e a tradicional monarquia.
No outro extremo do pátio, à luz de um sol brilhante que inundava as arcadas, o museu nacional expunha os gigantescos jarros de prata que o marajá de Jaipur enchia de água sagrada do Ganges e transportara para Inglaterra numa das suas visitas oficiais, para seu consumo e sua bênção própria.


À saída, esperava-nos um fim feliz para o Berto e para os ocidentais que, no final de um dia de reis, só um molho de imagens impressas em papel encardido por duzentas rupias em mais de dez poses aparvalhadas por minuto, nos poderia deixar tão completos como os reis banhados em água prateada do Ganges.

Ou como os elefantes deleitados com uma banana com casca enrolada na sua tromba franzida e peluda – franzida se comparada com as dos seus irmãos africanos – e despejada na sua boca alegre e carinhosa.


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Road to India



Consegui adormecer nas estradas da India.
Quase mil quilómetros depois, incapaz de processar, compreender, explicar e racionalizar os milhares de imagens por minuto que me invadiam os olhos em tropel.
E refugiei-me nos sonhos, um estado de letargia que é capaz de conciliar realidades sem preocupações de coerência social, que habitualmente não deixam rasto, senão no nosso próprio subconsciente.
O puto à boleia de pé em cima da bicicleta, de farda da escola e mochila às costas foi a minha última recordação, antes ou depois de adormecer.
Longe dos contos de fadas encrostados na poeira e nos buracos, infiltradas nos vestígios dos múltiplos impérios, espalham-se as artérias de um país imenso.
Segundo consta, mais de seiscentos dialetos, uma religião que aceita mais de três milhões de deuses, mas que se diz ser construída a partir do indivíduo.
Posto isto, é nas bermas das estradas desta península que nasce, vive (e se preserva) e morre a grande economia informal, o que os indianos eruditos apelidam de “uncorpored economy”.
Isto foi antes de adormecer, quando procurava desesperadamente enquadrar a anarquia num sentido lógico.
Às nove da manhã, nas bermas da estrada de Jaipur para Agra, idosas de saris coloridos e vassouras de ramos de árvores varrem a terra batida à beira da via rápida, outros menos idosos dispõem expositores de bambu forrados de coloridos plásticos que podem ser doces e pastilhas, renovam-se as barracas de madeira, que se irão transformar em salas de refeição ao ar livre, limpam-se as fileiras esporádicas de lojas emparedadas por corredores de cimento escurecido, enfiadas em minúsculos metros quadrados de indecifráveis profissões e setores de atividade, as panelas começam a fumegar e o cheiro a caril impregna-se no alcatrão.
E preparam-se para o gigantesco mercado interno que circula em múltiplas rodas pelas artérias envoltas em nevoeiro do país.
Muitas vezes em não mais que quatro patas ou três rodas.
Um olhar repentino vislumbra um barbeiro de navalha afiada, uma cara cheia de espuma e uma cadeira de ferro fundido.
E lembro-me da relação privilegiada do barbeiro de Humayun, o segundo Imperador da dinastia Mughal. Tão especial que lhe concedeu o direito a um lugar no Além junto da restante família real.
Nada nestas bermas de estrada escuras e lamacentas nos recorda o luxo dos palácios do imperador, mas prevalece o poder da navalha e a barba feita como precedente de todas as cerimónias religiosas importantes.
Penso que foi aqui, algures entre o quilómetro quinhentos e quinhentos e cinquenta, que me rendi ao facto de estar entranhado.
Sonhei com o velho que parecia petrificado na encosta da linha do comboio mas que, afinal, tomava conta das cabras, junto à via (relativamente) rápida, e com as mulheres que traziam lenha à cabeça e caminhavam, decididas, para um lugar qualquer.
Acordei na noite de Jaipur e, mais além, às portas de Agra.
Voltávamos a caminhar para Norte, voltávamos a pressentir o nevoeiro de fim de dia que se confundia com os fumos que abafavam a estrada.
Regressavam os cânticos, a música, as buzinas e os motores, aproximávamo-nos novamente da diversidade religiosa, os cânticos para a oração voltavam a sobrepor-se à anarquia hindu.
Tento acompanhar, mas entre o desistir e o entranhar, escolho a segunda.
Agricultura milenar, mercados frenéticos, por vezes na mesma estrada no mesmo quinhão, na mesma berma, gente que dorme nas traseiras e vive à beira de um mar de movimento, entre os poços, as noras, o cimento e o asfalto, ou apenas um jovem que, do terraço de um casebre, espreita a paisagem e acena muito para todos os circulam na estrada.
E as pessoas insistem em avançar, podem não saber o que o futuro lhes reserva, mas sabem o que o presente as obriga.

Mesmo que a força da palavra destino seja inexorável.










domingo, 14 de fevereiro de 2016

O guardião do templo



Sereno, quase furtivo, de elegância imperial, o guardião do templo falava-nos com os olhos e com a flauta.
Guardava o memorial de mármore construído para o após vida de toda a dinastia dos reis de Jodhpur.
Em silêncio, de flauta na mão.
Um memorial que é um santuário, porque aqui se acredita que os maharajas preservam o poder curativo que se sobrepõe aos mortais.
E esta fluidez entre os reinos da terra e do céu, já não nos causa qualquer estranheza.
Decidimos aceitar as coisas como elas são.
As mulheres de vestes coloridas varrem os pátios e os homens discretos, vestidos com a sua própria tonalidade de pele, tratam dos jardins sem mácula.
Como se fosse um intervalo na vida que corre, frenética, lá em baixo no bazar e na cidade velha.
Enquanto a manhã empurra o Sol para o céu e a temperatura do deserto invade os pátios, contorna os varandins de pedra e escorre pelas escadas que nos conduzem aos mausoléus dos reis defuntos.
Dentro do memorial, o sol perfura o mármore, que se acende em diferentes tonalidades de branco e ninguém parecer pisar este chão com os pés descalços, porque é um memorial que é santuário.
E o guardião do templo, esperou o momento e começou a encantar as serpentes que não existiam, mas podiam existir.
E os sons da flauta parecem perfurar o mármore, deixando o Sol entrar.
Cá fora, no morro frontal ao grande forte dos Mehrangarh, a paisagem árida relembra-nos a proximidade do deserto,
Lá em baixo, vive a cidade azul, a porta de entrada da rota da seda.



As particularidades geográficas deste reinado, desta província, explicam porque é que o ar é diferente, porque é que o ouro e a prata ainda forram o forte, e porque é que o mármore é mais fino.
Apesar de não falar, o guardião do templo explica-nos a razão por que Jodhpur, a cidade que abraça o deserto e as rotas comerciais de longa distância, é um local de comércio florescente.
E despediu-se em silêncio, apontando para os engenhosos sistemas de irrigação que alimentavam o lago que envolvia o memorial.
E aqueles que oferecem flores e preces no santuário de Jaswant Singh II, acreditavam também que era a água que os fazia viver.
No morro em frente, o forte realça o esplendor feudal do Rajastão.
No salão real sentimos que o comércio aproxima os povos, porque a descrição das reuniões políticas do rei com os seus assessores e súbditos, emissários e diplomatas, comerciantes e guerreiros, ele no seu trono, os outros em seu redor no chão forrado de tapetes, nos lembram que no Ocidente, Jodhpur ligava a Constantinopla.
Por acaso o nosso Oriente.
As mulheres, sempre escondidas por detrás de frisos de mármore, eram personagens atentas ao mundo e, no reino de Marwar, elas tinham direito a opinião, desde que devidamente comunicada por emissários, de trás das janelas de pedra para o trono real.
Falamos, evidentemente das principais mulheres do harém do rei.  
Aqui a fé hindu ajusta-se às práticas dos invasores persas e dos comerciantes que pululavam pelos territórios inóspitos do ocidente longínquo.
E enquanto o guardião do templo nos acenava ao longe, nós descíamos à terra e embrenhávamo-nos no mercado dos ruídos e dos cheiros, das crianças que choram, dos jovens que nos olham com uma curiosidade tão ostensiva, que nos inibe, e dos adultos que transportam vida de um lado para outro, em volumosas cargas amontoadas em veículos de duas ou três rodas, e as mulheres que, para além de tudo o resto, dão a cor aos cheiros intensos que emanam dos fumos, dos fritos, das especiarias e, esporadicamente, dos incensos soprados pelo vento, pelos templos encrostados no bazar.


Sim, às portas do deserto o mercado chama-se bazar e, agora que o guardião do templo já não nos vê nem nos ouve, um bigode lustroso (eu diria mesmo seboso) garante-nos, com um sorriso velhaco que, se tu estás feliz, eu estou feliz, e os tecidos e as sedas, as especiarias e as peles despertam no nosso novo amigo, o verdadeiro espírito de sobrevivência material que move esta horda de gente inquieta e frenética.
Por cima das nossas cabeças começam agora, depois da oração muçulmana da uma da tarde, a roncar os aviões de combate que descolam ininterruptamente em exercícios que têm um inimigo único em mente, apenas a cento e cinquenta quilómetros da fronteira ocidental.
Tão infernal e tão rasante que suspende a azáfama do mercado, o ritual dos casamentos hindus e o fascínio pela rota da seda.
Depois da oração da uma, a chama triangular que se desenha nas traseiras dos Migs russos, e que voa em direção ao vizinho ocidental, deixa-nos a pensar de como são efémeras as alianças estratégicas entre povos, quando as civilizações são milenares e as pessoas anseiam a diversidade.
- Tu feliz, eu feliz!

Assim seja, caro guardião do templo!

Guerreiros


O seu riso era estridente, a sua postura altiva e compassada, a sua voz forte, a sua presença intimidante para quem a ele se dirigia em hindi.
J por simplicidade poderia ter sido um dos grandes Mewar, uma dinastia de Reis que descendem, segundo dizem, do Deus Sol.
Perante a nossa interrogação cartesiana, J reformula.
Existem sempre espaços vazios na história, que necessitam de ser preenchidos
Afinal de contas é uma dinastia que reina há catorze séculos.
J não é Mewar mas é Guerreiro, o segundo nível no sistema de castas, tal como o sempre foram os Mewar, desde Reis com reino, a Reis mitológicos ou a empresários protegidos pela república.
Afinal de contas, na hierarquia das castas, são como os generais do passado
Mas foram sempre os grandes senhores de reinos menores, uma sobrevivência que se construiu de algumas batalhas, de um sangue especial e de uma arte de fazer diplomacia, desde os mongóis aos ingleses.


Em Udaipur cultiva-se o conto de fadas, e os palácios dos reis perpetuam a santidade destas dinastias, perante o povo e acima de um estado independente, uno e republicano.
J, assim como os outros guerreiros reais, convivem bem com esta posição dúbia, entre o céu e a terra.
Como o Hinduísmo, que se constrói de interpretações pessoais sob a sombrinha protetora da Trindade Hindu, dos sinais da positividade e os cinco elementos.
E as quatro classes da sociedade Hindu.
Debaixo deste chapéu, aproximadamente três milhões de Deuses, conforme o contador de histórias.
Em Udaipur, o maior dos (antigos) pequenos reinos do Rajastão, prevalece, sem medo do único dogma hindu vivo, a estratificação das castas sem pudor.
Apesar da tolerância compreensiva às diferenças de credo, do sistema diversificado de pensamento, as inconstitucionais castas que prendem os humanos ao destino, confundem o espírito cartesiano e humanista ocidental.
Não há no nosso glossário de conceitos, a ideia de um pensamento diversificado numa rígida sociedade estratificada.




Mas J não entende a nossa dúvida, como não entende que lhe perguntem se, no limite desta pluralidade de pensamento, não cabem os ateus.
Essa foi uma pergunta definitivamente errada.
E porque os Deuses e os Reis descendentes se representam com uma auréola santificada em todas as pinturas em seda executadas pelos artistas da escola de arte do Rajastão, neste conto de fadas que envolve o destino de um povo, as histórias épicas atravessam gerações.
Como a do cavalo Chetak que, ferido de morte, caminhou sempre para levar o rei para um lugar seguro, derrotado de uma batalha com os Mogois.
Para depois morrer.
Como os artistas da escola de artes o são, há muitas gerações.
Destino, reis mecenas e um culto de santidade que está para além de um mundo de abismais diferenças sociais.
Como ilustrava o (futuro) Nobel em “India – Um milhão de motins, agora” , a revolução só nasce se a crença que alimenta os humanos, for uma crença igualitária.
Mas não é.
Mas neste mundo gigante, todas as deserções à Trindade Hindu, foram punidas pela perda de fiéis e de representatividade.
Um budismo entrincheirado entre os Himalaias, o Jainismo encarcerado nos princípios da não-violência, em templos divinais e numa vivência de contemplação distante da vida e da sobrevivência.
Como diria, J com algum subtil e não ostensivo desprezo, sempre que existem sacerdotes existem deserções e separações, e “ no Hinduísmo não há sacerdotes”.
Confundido, tive de aceitar que não havendo sacerdotes, as pessoas descobrem, através da sua livre e intima interpretação do hinduísmo, que a estratificação é uma forma de garantir o livre pensamento e de atingir, a partir dos cinquenta anos, o estado de pré libertação dos bens materiais e, a partir dos setenta e cinco, a fase de preparação para a melhoria da vida seguinte.
Sim, porque a alma é eterna e utiliza os veículos que são os seres para passar de vida em vida.


Percebo que não é bem assim, mas sem saber bem como.
E para que não restassem dúvidas, os casamentos continuam a ser combinados, e absolutamente interditos entre diferentes castas.
Bom, ele falou em oitenta e cinco por cento.
A única sobranceria que eu quase não perdoei a J, foi a omissão – pior, a negação quando interrogado – das ligações familiares e de liderança espiritual de Ghandi ao Jainismo, uma religião igualitária, aquela “religião de sacerdotes” que se enclausura nos templos da não-violência, e que nasceu, tal como o Budismo há milhares de anos, da vontade de alguns em erradicar a Védica inevitabilidade da eterna e imutável estratificação social hindu.
Até porque, segundo percebemos, até ao século VI, as quatro classes (e mais os intocáveis) eram meros estados transitórios, e simultaneamente ascensionais e descendentes, por onde se catalogavam os humanos em função das suas ambições e capacidades.
E o destino nasceu depois, apesar do Hinduísmo ser uma “religião sem sacerdotes”
E porque Ghandi é a maior das reservas morais da contemporânea, independente e diversa mãe India.
Ao fim do quarto dia, já tinha a certeza que nenhuma moeda tem apenas um lado, especialmente na India.
E J voltava a rir, estridente, com o seu bigode afiado, o seu lenço de seda enrolado ao pescoço, a sua pose real e um jeito meio infantil de bater palmas santificadas e guerreiras, daquelas que por magia, ligavam as fontes dos lagos do jardim das princesas de Udaipur!

Afinal não era magia, era apenas trabalho camuflado de castas inferiores.