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quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

A Super Delhi


Dezassete milhões de habitantes é um sopro que, naquela madrugada,  não conseguiu afastar um nevoeiro branco que nos recebeu no aeroporto Indira Ghandi.
Branco que até parecia uma manhã precoce, arrancada da noite gélida e do fumo dos escapes dos autocarros, que circulavam ocasionalmente sem faixa definida.
E o nevoeiro branco só se desvaneceu à entrada da cidade imperial das avenidas largas, dos quarteirões desertos de habitações, onde apenas se vislumbravam árvores, embaixadas, vedações e luzes esparsas.
E pequenos grupos de intocáveis que vagueavam à roda de fogueiras semi-acesas, embrulhados em cobertores velhos e vergonha.
Mas dentro das portas Sul da cidade não havia vestígios da metrópole, as avenidas estavam pejadas de barreiras da polícia, militares dispersos por sacos de areia empilhados nas esquinas, quilómetros de avenidas, julguei por instantes ter aterrado num golpe militar e depois lembrei-me que a India tinha uma génese diferente, e o nosso autocarro sossegava-nos com um sorriso e um sotaque acentuado, estamos a preparar a parada do dia da república, no dia 26 de Janeiro e, como temos convidados especiais, sabem, vem cá o presidente francês, segurança especial, a porta da Índia não se pode visitar.
Mais tarde, quando calcorreava a Janpath em passeio matinal de domingo, constataria que eles tinham razão, parada é coisa séria que se ensaia com antecedência, com salvas verdadeiras e a hierarquia militar de sentinela com seus fatos de gala e poses altivas.
Da noite para o dia, chegámos mesmo a acreditar que havia nestes preparativos fortes reminiscências imperiais, junto ao quilómetro zero da república Indiana.
“Why not?” – respondeu-me o pretenso mais graduado oficial, quando lhe pedi autorização para furar em dois metros e meio a zona de segurança e guardar o porta da índia para a posteridade.
E balançou a cabeça negativamente em sinal de absoluta  concordância.
E ele nem se esforçou em explicar que aquela porta era agora a entrada para uma nova Índia, independente e próspera. 




domingo, 17 de janeiro de 2016

A cruz gamada



No templo hindu, de pés descalços e mosaicos frios de uma Delhi revestida por um manto de nevoeiro, a história de todas as religiões havia de nos ser contada por um Sikh de turbante vermelho e barriga balofa, pernas de pato e muito dado ao senso comum.
Começou por afiançar-nos que ninguém conhece nenhuma religião, porque esta – todas elas – é um mar.
E enquanto os nossos pés enregelavam, e nós pouco mais éramos capazes de interpretar a não ser o famoso Shiva, o Sikh assegurava-nos que havia pelo menos um milhão de Deuses Hindus e que o mar deles era ainda maior que o dos outros.
E continuávamos a perguntar a nós próprios porque é que não nos explicava o significado da cruz gamada, o único elemento gráfico que se sobrepunha aos Deuses da Criação, do Desenvolvimento e da Morte.
No fundo, o ciclo da vida. E o Deus da Morte apenas garante que todos nós criamos espaço para que outros nasçam.
E o Sikh depressa se entusiasmou com a sua ideia súbita de que a religião era uma invenção dos homens e que noventa por cento dos crentes apenas acreditava por temor do castigo.
Enquanto as correntes de ar percorriam os alpendres deste templo aberto eu relembrava-me do significado da cruz gamada sinistrógica, a original em que cada um dos cantos significava o mundo dos Deuses, o mundo dos homens, o mundo dos animais e o mundo inferior.
Isto apesar de um Hinduista não necessitar de ser sequer crente.
Mas o Sikh simplificou a História com a ideia de mar, apenas omitindo o facto de que o mar, apesar de grande, é finito.
E conduziu-nos a Shiva – seria o Kali? - , julgo que referindo ao Deus da morte, afinal de contas, a mãe de todas as batalhas.
E enquanto me perguntava de quantos Deuses se faz um tempo e contava pelo menos cinco, alguém me lembrava que, para estas religiões a cruz gamada invertida trás infelicidade, evoca forças obscuras e surge normalmente associada a práticas de feitiçaria.
Os tristemente célebres barretes negros, que ousaram inverter a cruz, tinham aprendido técnicas de magia tântrica e de xamanismo com uma ordem de monges tibetanos e despertaram as trevas no Ocidente.
No fundo o Sikh até tinha razão: os homens são uma espécie muito perigosa.
E enquanto ele se atrapalhava com a utilidade do KamaSutra ( e explicava que Kama era um Deus e não uma cama), aprendia perplexo que o conceito de virgem mãe não é um mito ou uma utopia, mas uma verdade científica.
Obviamente que ninguém lhe explicou que o conceito cientifico de virgem mãe implicava alguma espécie de contacto físico e uma complexa história de um espermatozóide endiabrado.
À saída do templo, havia vendedores de postais, bandeiras, óculos de sol e selos da república.
E eu expliquei-lhes que o Hinduísmo era um mar.
E eles riram-se, dentes muitos brancos numa pele muito escura!




sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Terminal C


O terminal C do aeroporto de Frankfurt é uma cápsula de adjetivos.
Indiferença,  desconfiança, rudeza e caos.
Se tínhamos duvidas de que partíamos para um mundo novo, o germânico C logo nos colocou em período de quarentena.
Brusquidão, fronteiras e controlo.
E novas cores e novos cheiros, uma antecâmara de caos para o outro mundo.
Will You stand in the middle of the corridor?
I’m just trying ...
So,  have a Nice day.
Ao meu lado estende-se um tipo que rosna com o olhar, olhos assustados e pose de Shik, uma barba rasa que insiste em não reagir às intromissões das mulheres no seu espaço de conforto.
A mulher pede passagem...e ele não reage mas, no fim, e perante a ira da mulher europeia, desperta...
Ou compreende (afinal não é fácil perceber a mulher europeia)
Não lhe perguntei a origem nem a casta, claro que não porque ele não me reconhece como interlocutor.
Ele bate com força na cadeira da frente quando o compatriota se reclina para trás.
A hospedeira esforça-se por servir de intérprete e ela acalma-se. E a segunda vez na última hora que as mulheres europeias o torceram. Mas afinal de contas ainda estamos num avião europeu.
O meu vizinho do lado ( que é contemporâneo e compatriota do vizinho da frente) voa com um boné do lakers na cabeça, mas não se atreve a desafiar as novas tecnologias, rugindo perante esta nova faceta da mesma Índia.
Não sei se o boné era mesmo do lakers, mas tinha aparência.
(Tomem nota que, a partir de hoje, todas – mesmo as mais precisas ou inócuas –afirmações ou descrições terão sempre múltiplas interpretações, serão sempre relativas e condicionais).
Natureza hindu em estado puro.
E cheira a caril na fila 71, no lugar k do Airbus A 380 800 e o hospedeiro esforça-se com brio em servir o hindu, evitando agilmente equivocar-se no prato e na raça.
Pela diversidade evidenciada a bordo, e o esquema de prioridades politicamente corretas dos europeus, vamos esperar pela omissão do porco, da vaca e, só depois...
Já são oito da noite na fluida hora de  Delhi apesar de estarmos ainda a atravessar a Roménia.
E o nosso vizinho nem come e continua a recusar a convivência pacífica e eu olho para ele com ostensiva curiosidade de um ser esperançado.
Ele olha em frente para a sua televisão transparente espreitando o seu filme de bolywood enquanto o seu vizinho e compatriota se entretém com um policial americano e aproveita para se recostar outra vez.
Mas apesar do vizinho do lado não falar, o nosso relacionamento melhora de minuto a minuto, sempre que, após mais uma recusa de comer, esfrega umas sementes entre a palma das mãos e coloca-as discretamente na boca.
Sobre a Croácia ele insiste em fincar os dois cotovelos sobre o apoio de braços partilhado, mas depois de atravessado o Mar Negro e a caminho do Cáspio ele já me concede a parte traseira do apoio e eu começo a acreditar que vamos ser amigos antes de Delhi.
Longe já vai o terminal C que, na lógica germânica, funciona como um espaço de reinterpretacao.
Um ancião de barbas brancas – também ele sikh – turbante preto, mãos longas e magras e um anel que ele preza como se representasse todo o significado naquela mão direita, flutua no corredor do A380, entre as filas 66 e 90 e, com ele, uma auréola de visão e karma.
Enquanto no outro corredor os hospedeiros iniciam as vendas a bordo.
Sem surpresa, sem sucesso nada compatível com a filosofia despojada que predomina na nave.
É o meu vizinho espreita para o meu concerto da kate perry
Estamos a chegar a Delhi e o meu vizinho toca-me no braço e aponta para o mapa assinalando Dehli, it is my home, I am returning home, e abanou a cabeça e juro que lhe descortinei uma lágrima.
E tentou-me explicar tudo aquilo que não tinha falado na viagem.
Mas o nosso esperanto não era suficientemente compatível e trocamos sorrisos de compreensão e fiquei agarrado no número três. Talvez três filhos a sua espera, ou três anos que esteve fora
Apenas uma certeza é essa era corroborada pelo boné...ele vinha mesmo da América.
Esta é a sensação mais esperada deste povo. Custa em encurtar as distâncias mentais, mas arrisco-me a adivinhar que tende a entranhar.
E fiquei a imaginar a vida do homem, antes e depois do voo LH 706.




segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Pudor



Ontem desaguou uma baleia morta na costa da Parede.
Diziam as notícias que era uma baleia juvenil, que se tinha perdido da mãe.
Alguns asseveravam que tinha morrido de fome.
Magotes aglomeravam-se em segunda faixa na estrada marginal, atravessavam loucamente as quatro faixas de um trânsito intermitente, contornavam o vendaval de Domingo de manhã.
Um perigo, relatou-me um recém chegado apreciador do mar, à praia das Avencas, ali ao lado, só eu, o vento e o mar.
É já ali, assegurava.
Uma baleia morta?
Olhei para o mar e enchi-me de pudor!
Nunca tinha imaginado a minha praia como um cabo das tormentas ou um cemitério de mamíferos.
Eu teria preferido que a baleia juvenil cortasse o mar nas Avencas, paralela a terra e expelisse água salgada como um repuxo municipal, fizesse um qualquer ruído de baleia e tivesse furado as ondas até ao mar aberto


Mas não fez. E eu continuei a desafiar o mar com os olhos.
E não me mexi.
Por pudor.
Hoje visitei uma fábrica morta, tão morta como a baleia que, hoje, em direto do jornal das oito era uma massa em decomposição, triste de ver.
Como a fábrica, aliás, vazia de milhares de trabalhadores, desventrada pelo tempo e pela rapina do homem.
Sim, com letra pequena.
Por pudor, só guardei imagens de sinais de vida, dos objetos e sinais que a fizeram viver mais de cem anos.
Mais de cem anos é uma bela idade para qualquer mamífero!


sábado, 9 de janeiro de 2016

Zoom


Ontem adquiri uma visão mais próxima das coisas. E pergunto-me se isso é assim tão importante. Uma nova lente para os factos, um bom argumento para deixar de ter uma perspetiva de helicóptero 
Uma lente que me aproxima os 55 dos 250, é motivo de alguma comoção, confesso.
Assim como uma criança que reaprende a ver com o seu novo para de óculos, de cores garridas e materiais flexíveis, ou aquela emoção do antes natal.
Sensação que se desvanece, contudo, e a partir de um pequeno nada.
Quando a vista se habitua, e quando a expectativa de uma visão mais próxima é destruída pela perda de profundidade.
Na vida e na imagem.
No futebol e nas lógicas de percepção do mundo.
Reformulo assim os meus alvos de procura
Em busca da popularidade perdida ou da aceitação condicional encontro,porém, a arte da prestidigitação “all around me”
Resta-me uma sensação (um sabor?) de algum desconsolo (amargo?) de que vou ganhar peso e de que me posso desiludir ainda mais (próximo) depressa.
E começo a fazer contas de quanto a lente me custou!



sábado, 2 de janeiro de 2016

Yellow Submarine



Hoje não havia surfistas na praia, apesar das ondas.
Hoje os tristes invadiram a praia.
Tristes, apenas pela ideia do passeio.
Promenade de um Sábado com sabor a Domingo.
Havia ondas mas não havia pranchas.
Nem sequer gaivotas, apesar das ameaças de tempestade.
A resposta veio dos céus:
São os Homens, meu Senhor, são os Homens
Da irreverência e da aventura, resta o submarino amarelo!



Nenhuma moeda tem apenas um lado



Esta imagem foi recuperada do meu baú de esquecimentos.
Bangalore, 2009.
Apenas miúdos a jogar cricket nos jardins de um Templo Hindu.
Na altura, não entendi o alcance da imagem, o espelho da amplitude e tolerância perante as múltiplas interpretações da experimentação Hindu, aquela que é impossível de ser definida.
Por isso só hoje saíu do baú da tecnologia digital.
Algazarra num local de culto, aceitação da alegria como uma interpretação religiosa e dois mundos que se cruzam entre a religião e o desporto (e um credo que não permite interpretações).
Não há luz sem sombra.
Acho que é por aqui que eu vou, quando voltar.
Em breve!