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quarta-feira, 13 de maio de 2015

Juanito




Juanito sentia-se o pequeno rei dos céus, uma plantação de algodão doce que lhe apetecia cheirar, não fosse o vidro duplo que lhe deformava o nariz e replicava o arco iris nas lentes grossas que piscavam com os raios de sol que furavam os pedaços de nuvem.
- E se o salto para o lugar seguro for pequeno e com elevada probabilidade de sucesso mas o precipício entre lugares seguros for mortal, saltas ou não saltas?
Juanito era um vidente que se interrogava sempre que sonhava acordado, quando se olhava a ele próprio de dentro da cabeça de uma serpente, esgueirando-se do seu corpo, de olhos brilhantes e língua recortada.
- E se a terra tremer, saltas ou não saltas?
Juanito era um homem que adorava perguntas mas não tinha quem lhe respondesse.
Por isso continuava a perguntar acordado.
- E se fores pássaro, voas ou não voas?
Do cimo da cabeça da serpente, Juanito não se conseguia fixar com nitidez em si próprio, porque a serpente serpenteia e é incapaz de fixar o olhar num pedaço de sonho.
Juanito era um homem viajado porque não tinha memórias.
- E se me deres um euro, quantos ovos posso comprar?
Era a última pergunta que se lembrava que alguém lhe tinha feito. Talvez o miúdo de olho vivo e passada leve, lá longe no musseque
Juanito colecionava lugares, mas esvaziava as memórias com perguntas e sempre que fazia uma pergunta imaginava-se um animal diferente, pairando sobre o seu corpo imóvel, um corpo que exalava memórias em cada viagem, em cada hemisfério que atravessava.
Juanito incomodou-se com a última pergunta; algum mecanismo do subconsciente tinha falhado para ele se lembrar de forma tão nítida do miúdo do musseque
E ficou inquieto. E deixou de se ver a si próprio, caiu do corpo da serpente no seu próprio corpo. E procurou resistir:
- E quantos passos são daqui à América, advinhas ou não advinhas?
- E se saltares de paraquedas, cais em terra ou no mar?
Juanito já tivera memórias, até que elas passaram a fazer questão de lhe lembrar o que perdia por não estar em qualquer outro lugar.
Sendo um processo circular, a memória nunca se encontra com o espaço presente.
Desencanto e perda, uma definição para raízes.
Só quando perdeu a memória, Juanito passou a partir descansado.
E Juanito tinha medo que as memórias o traíssem e o impedissem de continuar a viajar
Porque ele, Juanito era um viajante!
Quando as perguntas se esgotaram, Juanito acordou alagado em suor. Não havia Sol nem mais perguntas, o céu estava escuro, não se via mar da janela e ele viajava num imenso avião com as luzes apagadas.
Olhou para cima e não viu a serpente.
Olhou para trás e não viu ninguém.
À sua frente piscavam milhares de luzes, centenas de botões, manómetros e moches, que reforçavam o contraste entre a cabine e o céu estrelado de infinito.
Cruise Control era a mensagem do painel
Pegou nos comandos que baloiçavam à sua frente e sorriu, porque a única coisa de que se lembrava era do “saltas ou não saltas?”
- Claro, salto sempre!

Juanito era o comandante do novíssimo A380 da companhia das arábias.


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