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sábado, 14 de março de 2015

Gran Via



É inevitável.
Sempre que subo a Gran Via, vindo do Callao começam a desfilar na minha memória, lembranças adolescentes dos passeios em família a Madrid.
Inevitável porque era o acontecimento da nossa adolescência, o passeio de carnaval de automóveis em fila (eram pelo menos dois automóveis), saída de madrugada, o pequeno-almoço em Montemor que servia de reunião de família, os primos todos, o tio que conduzia pelo meio da estrada, antes e depois da fronteira, a longa fila de fronteira, para cá de Badajoz, formulários à saída, algum desplante espanhol à entrada, as casinhas alentejanas, tão brancas quanto postos de fronteira do lado cá, edifícios de vidros espelhados na Espanha em busca da modernidade, o almoço na pousada de Oropesa, o cheiro a deserto europeu na longa planície, ou no inóspito planalto, antes da grande cidade, verdadeiramente a única grande cidade que conhecemos durante anos.
A chegada de noite fria (era sempre Carnaval) à praça de Espanha, a curva para entrar na Gran Via, rua acima o deslumbre dos saloios pelo néon espanhol dos edifícios da avenida (era uma luz especial, diferente da dos filmes americanos, mas o mais próximo que conhecíamos de uma grande urbe) nariz esborrachado nos vidros laterais das nossas cascas de noz mas que, apesar de tudo, se distinguiam entre um enorme rebanho de SEAT (Espanha, país de uma industria de mercado interno).


Depois a chegada desordenada ao hotel Gran Via, no coração da urbe, na esquina da Calle Montera, a difícil operação de estacionar os automóveis nos minúsculos parques de estacionamento das ruas que circundavam a grande rua, o jantar no self-service, o cheiro a metropolitano, e hoje, dei por mim outra vez a olhar para dentro do Hotel Trypp (que é como ele se chama hoje) à procura do self-service, que agora se chama Berska, ou do café de esquina que hoje se chama Mc´Donalds e estava lá tudo, a recolha dos talheres, as mesas embutidas com uma cobertura de um plástico que parecia madeira, mas não era, porque em Espanha tudo tinha de ser massificado, funcional e pouco refinado, e uma tremenda excitação de todos nós, os putos, porque estávamos no estrangeiro, tínhamos feito uma grande viagem e cheirava a cidade.


Pronto, e acabei por me lembrar que já passou quase uma geração, e que já não somos os mesmos, os que chegaram e os que partiram e que nós próprios, já vivemos uma vida sempre a voar, sempre cheios de pressa para qualquer lugar, tão esquecida que estava aquela época dos rituais em que os momento eram espaçados e vividos com memória.
Em poucos lugares vejo o meu passado de puto de forma tão cristalina, tão real, tão como se fosse ontem.
Mas acontece sempre que subo a Gran Via do Callao para a Calle Montera.
Quarenta anos depois, o meu puto liga-me (passeava eu na Gran Via outra vez) a dizer-me que vai emigrar, para Madrid talvez, para Londres se calhar e achei “força puto” mas com a súbita consciência de o quarto do puto está cada vez mais vazio.


A subir do Callao para a Montera.
Hoje, sexta-feira dia 13, e enganei-me na reserva do dia do voo de regresso a casa, fiquei com o cartão de débito sequestrado na caixa automática de um Banco Espanhol, e confrontei-me, cheio de vergonha e horror, com as mãos impolutas de uma guarda de raio X a vasculhar as minhas meias e cuecas sujas, espalhadas à vista de todo o aeroporto, à procura de uma tesoura que a menina da máquina jurou que estava dentro da mala (até virou a máquina para mim) e eu, horrorizado e inocente jurava que não, e afinal não havia tesoura nenhuma, ela fixou a imagem errada e alguém passou com uma tesoura das unhas para um outro lado qualquer!

A caminho da porta de embarque dei de caras com o D.Quixote e pensei “Cruzes”

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