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segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Seres (não imaginados) imaginários




Na quinta-feira de noite cerrada, chovia tempestade nas ruas.
Sem parar, sem parar nunca mais.
E não havia sombras que não as das árvores que tremiam de frio, de humidade e de medo de caírem.
Os faróis dos últimos automóveis despenhavam-se em lagos agitados de água mista, doce vinda do céu, salgada empurrada pelo mar.
Poucos se lembravam da mesma noite de tragédia, algures ano longe de 67.
Mas às sete e cinquenta e nove, por detrás dos portões calcinados da quinta da vila, moviam-se dezenas de seres que rondavam os faróis com trejeitos de mortos vivos de sorriso aberto e espírito sem resquícios de conformismo, daquele conformismo que antecede a falência dos sentidos vitais.
Eram apenas homens e mulheres que vivem em buracos "quando a tempestade vier já estamos escondidos no covil" que se alimentam do que a caridade lhes dá, que rondam por ali ou por aqui sem destino, mas com vontade.
E gratidão, e humor malandro e uma delicadeza que se expressa em diversas línguas, sim porque " tu, ó cabo verdiano, a tua língua não é língua" -diz o moçambicano, ri-se o português, agradece o moldavo
"Desculpe ó menina" enquanto aceitam tudo, guardam o que podem e aproveitam para falar, porque falar espanta os fantasmas e não perdem o sentido prático de comer enquanto falam, sem vergonha de pedir enquanto comem.
Sem sofreguidão, todos nós rodeados de uma tempestade que transforma as árvores enormes da quinta no Adamastor, que virá com certeza, assim que todos partirmos.
Sem lar, mas nem parece que não têm abrigo ou destino!



" porque o homem inventa deuses para dançar com eles e para eles, e brinca aos animais para poder gritar como eles e cantar e voar como eles e perder a consciência de ser homem e poder ser humano e divino"

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