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sábado, 16 de março de 2024

Vodka com sabor a mel


Como em todas as histórias, começa-se sempre pelo princípio.
E, neste novo princípio, sobressai o domínio da natalidade e das novas gerações sem memórias à flor da pele, mas com um enquadramento muito visual da História e muito sensorial do presente, como algo que faz parte da nova construção.
Um país de um catolicismo beligerante, do qual nascem muitas crianças, do qual se espera que seja o útero de todas as revoluções em prol de uma nação conquistada e do qual se espera um ódio santificado a quem lhes pode mal querer, especialmente os vizinhos.
E nas manhãs geladas da Páscoa de Varsóvia, são milhares os miúdos que se espalham, entre as cores garridas dos seus blusões de Inverno, pelos símbolos reconstruídas da ainda independente monarquia polaca, no museu do orgulho judaico, antes da sua extinção, no museu do desespero e da revolta com uma narrativa em que a galeria dos culpados se encontra em constante atualização.   
E, a estas crianças que já nasceram na Polónia, um grande país da Europa Central, tudo é mostrado, sem filtros, porque não se pretende que esteja a crescer uma geração de veludo
E as multidões de natalidade pujante fazem uma fila no reconstruído palácio Real, enquanto os adolescentes são induzidos a ter opinião em redor das peças de arte contemporânea no CSW.
Memória limpa, doses de crueza e sem interpretações alternativas do século vinte polaco, e criatividade máxima para interpretar o presente e moldar o futuro.
Mais tarde no dia, junto ao Vístula, nasce uma nova modernidade que alia o pensamento científico e universitário, a arquitetura vanguardista, a moda e o design de autor, uma marca definitivamente cosmopolita e ocidental que flui, rio abaixo, em direção à cidade museu.
Melhor que uma marca cosmopolita e ocidental, assim pensa um povo que cresce com jovens disciplinados, focados e com uma visão única do que não pode voltar a correr mal com a nação, muito competitivos e crentes que o ocidente tem uma divida por pagar, e com uma natalidade muito favorecida pelo catolicismo militante, tão divergente da europa envelhecida como o seu crescimento económico.
Nunca descobrimos a razão do ruído das mulheres que brindavam com champagne nos Três Toros, mas certamente preferem a sofisticação de uma auréola internacional com sotaque catalão e brisa do mediterrâneo, às sopas forradas de pão e às fotografias saturadas de guisados de uma gordura que se impregna nos restaurantes de uma rústica polónia que jazem, vazios, na cidade velha – que, afinal de contas, não é velha.
À noite, nos bares de Vodca da capital gelada e tardia ou em Cracóvia onde se respira cerca de vinte e dois graus de aristocracia poupada pela guerra, descobrimos, após um jantar de carne alemã regada de vinho francês, descobrimos o vodca com sabor a mel e estamos decididamente a entrar no universo autorizado da criatividade máxima para interpretar o presente e moldar o futuro.
O Vodca com sabor a mel é uma imagem expressiva do que os polacos pretendem do seu futuro, sofisticado, com sabores fortes, mas frutados sem mascarar o essencial, o facto de se tratar de uma bebida com 40º de álcool.
Um país à beira do Vístula apenas a cento e trinta quilómetros da guerra.



sábado, 9 de março de 2024

Onde mora a alma velha?

 


Leon Machowski foi um escultor do antigo regime, um artista militar que ultrapassou os horrores da guerra e viveu numa obscuridade tranquila, trabalhando na reconstrução da cidade ao serviço da estética construtivista.
Morreu de enfarte em serviço quando esculpia um baixo-relevo no tumulo de um arcebispo polaco na igreja São João Batista.
E esculpiu a estátua dos pescadores no centro da lagoa no Jardim Krasiński, um reservatório artificial construído no século dezanove que nos remete para as paisagens polacas e para os símbolos nacionais, o lago que simbolizava o Mar Báltico, o riacho que desagua nele, o Vístula, e o campo rochoso com uma cascata, uma reminiscência das montanhas. 
Uma obra de engenharia que atravessou o século vinte incólume, o triunfo da água no sentido figurado sobre as bombas, uma resiliência que inspirou a reconstrução, uma referência estética que moldou os espaços da cidade.
Já a memória do escultor que morreu com a Perestroika, parece não ter sobrevivido aos novos ventos vindo do Ocidente, Em 2013 por decisão das autoridades, o estúdio do artista em Varsóvia foi demolido. As esculturas que o rodeiam e os mosaicos que decoravam o pavilhão também foram destruídos.
Parece que o novo regime também é pouco condescendente com alguma alma velha e, pelos vistos, não perdoa aos colaboracionistas. Que o diga, o majestoso Palácio da Cultura a quem querem condenar à morte, apenas por ela ter sete irmãs russas.
Naquela manhã em que água sobrevivia a temperaturas que a podiam ter gelado, o idoso que não se dava a conhecer, refugiava-se no banco de jardim com vista para o Báltico e desenrolava a história de uma vida que parecia prestes a lançar-se ao mar, numa tranquilidade que a natureza estabelecia como inevitável. Como se a alma velha não se enquadrasse nos novos tempos.
A alma velha vive em contraciclo, entre os dinossauros do exército de salvação que, no museu nacional povoam os bengaleiros transformados pelo cheiro a mofo em instrumentos de pleno emprego dos reformados da democracia popular que nos lembram a irmandade moscovita que protegia o realismo do seculo dezanove com um zelo de elevada densidade de vigilantes por metro quadrado de tela. 
Mas a alma velha também se manifesta amiúde nos recantos de silêncio entre a intelectualidade exilada, que se refugiou nos redutos da cultura ocidental e perdeu as referências do sacrifício, apenas pinturas de tons carregados e rostos enrugados que desfilam nas paredes do museu nacional, pintados a partir de recordações longínquas da estepe gelada que se tornam cada vez mais difusas, quanto mais. 
E por isso a Nação tem dificuldade em fazer o culto dos heróis individuais porque uns, caíram em desgraça pelo seu comprometimento político e outros, não despertam a pátria, por falta de comprometimento e de capacidade de sofrer, desenraizados por exílios dourados e - suprema ironia – fugindo da falta de identidade nacional e de séculos de ocupação estrangeira.
Nesta manhã de Páscoa cinzenta, os pescadores de pedra do Báltico, recriado pelos últimos monarcas legítimos da Polónia, olhavam com condescendência para as margens silenciosas como se, para o colaboracionista Machowski, o velho debruçado sobre as suas próprias memórias escritas representasse, no seu corpo frágil, Adam Mickiewicz, o poeta, Chopin, o pianista, Marie Curie, a cientista, todos eles numa inteligência que deleitou a humanidade, mas que não serviu a nação.
É como se o escultor Leon gritasse, do centro do lago que se podia chamar Báltico, que os únicos heróis da pátria eram os coletivos, os oficiais de Katyn, os intelectuais democratas de Varsóvia e os operários de Gdansk e de todos os que souberam sobreviver, mesmo alguns, sem lutar.
A única certeza do velho cheio de memórias é que a alma velha ainda povoa os recantos da nação, mas já não são eles que vão fazer o futuro.



sexta-feira, 8 de março de 2024

Sem censura

 


No CSW, localizado no topo norte do parque Liezensky, respira se uma atmosfera reciclada, a reconstrução detalhada de ambientes passados com cheiros de tinta nova, como se o tempo não tivesse passado por aqui, afinal de contas é sempre mais reconfortante acreditar nos bons genes da arquitetura clássica que admitir que em Varsóvia, não ficou pedra sobre pedra das memórias da monarquia polaca.
Mas no U- jazdowski, o tempo e a arte são contemporâneos, um momento em que a europa central se liberta das grilhetas do construtivismo, as formas são minimalistas, os cacifos são de moeda a fingir, o bar serve sumos saudáveis e tartes vegetarianas, e até os vigilantes de sala parecem humanos, como que hipnotizados pela legião de crianças que se atrevem a contestar a interpretação dos mestres, diante das obras do inconformismo dos artistas que, nos anos oitenta do seculo passado iniciaram a nova revolução, ao lado dos sindicatos de Gdansk e da igreja católica de todo o país.
Nie ocenzurowano – polish independent art of the 1980s é, de acordo com o  catálogo, uma exposição que mostra um panorama alargado do fenómeno artístico através do qual os artistas se manifestaram de diversas formas a sua oposição e independência do regime comunista da República popular da Polônia e do seu aparato opressivo como forma de aniquilar as aspirações públicas de liberdade.
Daí a atmosfera nova Polónia que se aloja dentro das paredes do passado, um local onde a arte decide por ela mesmo o que quer ser e como quer parecer
Na Polónia todos os lugares têm um significado cronológico, antes de serem o que são. A Polônia monarquia de Cracóvia até 1549, a Polónia da nova capital monárquica em Varsóvia ao longo da rota real nas margens do Vístula, o primeiro desaparecimento enquanto país a partir de 1759 quando as alianças a norte não foram suficientes para resistir às alianças que, a partir daí, rasgariam incessantemente o pais de leste a oeste, a democracia  incipiente de 1918, minada pela incompetência estratégica travestida de laivos de nacionalismos e de ingenuidade dos novos intelectuais, cuja essência sempre viveu no exílio, o retorno ao inferno da extinção em 1939 e os mais de 40 anos de obscurantismo dialético até que, em 1990, a europa central evaporou o leste, num sopro vindo de oeste.
Mas, por aqui, nos corredores deste espaço percorremos um dos raros momentos em que a história não se enquadra em nenhum significado cronológico preciso, um dos raros momentos em que a disrupção criativa se sobrepôs ao pensamento dominante e desafiou o futuro.
E a ideia, tal como o guião, não podiam ser mais sedutores: desobediência, clandestinidade, diálogo com o publico, militância, reflexão da nossa condição espiritual, consciência politica e, sem cedências, a liberdade. Afinal de contas um filme revolucionário rodado nos anos oitenta do século passado, num espaço e num tempo em que as causas revolucionárias tinham sido extintas pela falta de memória dos infernos e pela perceção coletiva de um futuro de redenção e bem estar sem limites.
Talvez no incompleto espaço chamado Europa mas não no território dos novos europeus.
Na Polónia que aspirava de novo a ser um estado da Europa central e que queria rejeitar os ventos de leste dos descendentes dos velhos mongóis, e a nova revolução proclamava se em  pequenos espaços, através da produção de miniaturas da obras originais, escondidas em malas de cartão, expostas em pequenos espaços, de casa em casa, como uma nova afirmação do domínio da individualidade sobre o que, outrora, parecia ser o destino dos povos, a revolução construída para as massas, baseada no pensamento único.
Mas porque as revoluções não sobrevivem ao sussurro, e a liberdade criativa não pode ser reduzida a amostras nem encarcerada, logo os novos portadores da boa nova, ou da nova ordem espalharam as suas obras pela paredes dos claustros das igrejas, numa improvável aliança entre a igreja católica, o espírito libertário e o pensamento revolucionário, uma impossibilidade apenas possível na Polónia, que a história confirma que não é circunstancial, porque a tolerância e provavelmente a única forma de garantir a unidade de um povo que teima em querer existir.
Aliás uma tradição de séculos, que o diga Copérnico, quando no século catorze proclamou, em Cracóvia, a submissão da terra ao sol, e foi objeto da admiração geral, sorte diferente de Galileu, nascido no berço da igreja católica.
E na exposição dos novos artistas, proliferam as referencias simbológicas ao marxismo decadente em obras de protesto como a instalação de a “revolução somos nós “ou a pintura “dificuldade em respirar”, o realismo de uma contemporânea ambição de independência em “polacos construindo a sua bandeira nacional” e a persistente reflexão sobre a sua condição espiritual inspirada na iconografia cristã em  “o sinal da cruz” .
Sem surpresa, uma síntese da forma como se tem construído a nova Polónia, numa afirmação de uma entidade própria, nem sempre percebida pelos europeus do ocidente, por alguma razão, a Europa central não é leste nem oeste, mas quem disse que na Europa deve prevalecer o pensamento único, ou não deverá a diversidade ser a nossa forma de afirmação no mundo?




sábado, 2 de março de 2024

WAY TO INDOCHINA #19 - Last train to (from?) Indochina

 

Na península de Luang Prabang, os oitenta e três mosteiros, um património mundial baseado na harmonia entre a arquitetura colonial e o espiritualismo budista temperam o frenesim asiático e aproximam a cidade, que foi capital real do império do Laos, na época dourada após a queda dos kmers, entre o século catorze e dezasseis, da visão neorromântica do Oriente. 
Há nesta simbiose arquitetónica que tanto fascinou os técnicos da UNESCO um certo sentido histórico porque os reinos de Luang Prabang foram os mais iluminados das centenas de anos de divisão natural do reino em protetorados fantoches das potências vizinhas, mas também porque foi a capital do império nos séculos em que o Laos foi um verdadeiro Reino, curiosamente, coincidente com o ocaso dos kmers em Anghor, mais a Sul., mas não foi curiosidade apenas, foi uma descendência real que acreditava na sobrevivência da indochina, talvez com o epicentro mais a norte, que apenas ainda não sabia que o era, a par dos grandes impérios emergentes.
E, parece hoje um facto histórico incontestável que foi o colonialismo francês do século dezanove, que voltou a colar as peças do Laos e que procurou construir um novo reino a partir de Luang Prabang, com um rei a sério, e tudo.
Não que fosse esse o objetivo dos franceses, mas a sua estratégia de utilizar o Laos como um território tampão entre as potências vizinhas e concorrentes e a verdadeira Indochina, aquela que tinha margens de mar, foi o estímulo necessário para que hoje Luang Prabang – e alguns outros locais da nova República Popular do Laos – nos revele um sedutor mosaico de diversidade arquitetónica e bom gosto cultural.
Preservada em nome da memória, seja ela qual for, sem juízos nem preconceitos
Apesar de, ainda assim, em Luang Prabang serem escassos os momentos de visão de um santuário paradisíaco de meditação, definitivamente um mito.
Sabemos, claro, que esta é uma visão fútil e desajustada da realidade (vivida pelos seus habitantes)  toldada por uma conversão apressada (e apresada numa espécie de moda) a Buda em posição de proteção, de quem não tem receio e que nos empurra para uma vida errante, um vagabundo que respira da meditação e distribui desprendimento nas experiências partilhadas e na acumulação de saber. 
Mas nos fins de tarde de Luang Prabang, sobre as águas do Mekong banhadas pela bola de sol que se despenha entre as montanhas, respira-se a indolência da Indochina em estado puro, onde só o mundo importa. 
Mas para logo a realidade destruir a nossa perspetiva orientalista do Oriente, com o cheiro a diesel do motor do barco que arrancava com um toque de fusíveis e se desfazia na travessia do riacho Kong, nas costas do Mekong, apenas uma linha de água e um monte de lama que nos separava do jantar.
A manhã tinha começado cedo em Luang Prabang entre pedidos de respeito feitos em inglês, para mantermos distância de segurança em relação aos monges que, antes de amanhecer, percorrem as ruas pedindo aos locais arroz e outras oferendas, para se alimentarem durante o dia. 
Os antigos colonialistas, cheios de culpas, princípios e respeito pelas sensibilidades e fé de cada um, reservaram os três metros de distância, não lhes tocaram, alguns rezaram e muitos deram oferendas 
Os novos donos da Ásia, que não param de se querer perpetuar em selfies e poses de imperador sempre com o incentivo adequado do fotógrafo, atuavam como os novos colonizadores, tocavam nos monges, envolviam as lentes da câmara nas vestes dos monges e garantiam que nenhum close-up era mais intenso que o deles. 
Esperemos que a História seja tão recriminadora com estes novos imperadores da Ásia e que os povos, um dia, se possam declarar oprimidos. 
Nos odores da manhã do Laos, cheirou-nos a incenso no Wat Xang Thong, a peixe desventrado mas de longos bigodes, do rio Mekong, a morcegos fritos entre outros animais, legumes inacessíveis e caril, e malagueta e umas quantas galinhas viradas de cabeça para o ar, bem vivas que gritavam quando lhes atacam as patas, para melhor arrumação. 
Nas imagens da tarde precoce de Luang Prabang deixamo-nos levar, uma vez mais, pela fragilidade da vida das pessoas, dos comerciantes que foram buscar os filhos à escola e montam as bancas do mercado noturno, uma tarefa perene que se repete todos os dias e morre, como uma borboleta, umas horas mais tarde, sempre com as crianças por perto, nas suas fardas da escola e que adormecem, noite chegada, entre os tecidos, o artesanato, as mãos do povo do Laos que se oferecem ao escrutínio dos estrangeiros. 
Espera-se muito das crianças da Indochina, vão a escola, viajam na dianteira das motas sem capacete, ajudam os pais nos mercados da noite, enfrentam os feiticeiros da aldeia que insistem que a terra é plana porque não vemos a curvatura da terra, e os deuses do dogma que lhes vão continuar a explicar que, numa utopia já desaparecida, os homens podem ser todos iguais e felizes desde que sejamos obedientes e nada irreverentes. 
Mas num país em que as crianças conduzem as suas motorizadas para irem para a escola e a sua independência precoce é a forma dos pais garantirem a sua sobrevivência, os velhos dinossauros estão em elevado risco de extinção. 
Num último adeus ao Laos a criança acenou da mota da mãe, mãozinhas firmes no guiador, mãos carinhosas a arranhar a perna da mãe, uma mão entusiasta a dizer-nos adeus, a acenar-nos para a traseira do tuk tuk que nos deixou no aeroporto e nós só lhe víamos os olhinhos que piscavam de expressividade, porque uma máscara de pano lhe cobria cuidadosamente a boca, porque a energia verde ainda não chegou ao Laos e uma mãe que nos sorria com os olhos, de orgulho, sabe que só ela o pode proteger. 
Corta! 
Foi a última imagem do Laos, mais poderosa que todos os monges cor de laranja que vivem e estudam em Luang Prabang.
Tão pungente quanto as quatro faces de Buda. 
Se não fossem as profundas saudades das minhas raízes, esta seria o meu destino, um vagabundo que respira da meditação e distribui desprendimento nas experiências partilhadas e na acumulação de saber.
Mas, no país dos elefantes, o mundo relembra-nos que ainda és demasiado novo para morrer distante, mas já és demasiado velho para ser errante 
Heaven in Earth for you, Indochina!